“História pra Ninar Gente Grande” é o enredo da Estação Primeira de Mangueira para o carnaval de 2019. Em seu quarto ano na escola, o carnavalesco Leandro Vieira apresenta mais um enredo autoral e, segundo ele, o mais trabalhoso em pesquisa e que se prepõe em contar um outro lado da história do Brasil. Para Leandro, se for para ser enquadrado num estilo, o enredo da Mangueira pra 2019 é um enredo de caráter histórico. Um recorte da história do Brasil com um olhar mais particular. Um olhar diferente dos tais atos heroicos de figurões como Pedro Álvares Cabral, a Princesa Isabel, o imperador Dom Pedro, o marechal Deodoro. O lado “B” da narrativa construída pela história oficial, onde estão nomes de gente comum, que deveriam estar nos livros, mas curiosamente, ou propositalmente, foram deixados no anonimato.
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“A proposta é questionar acontecimentos históricos cristalizados no imaginário coletivo e que, de alguma forma, nos definem enquanto nação. Essas ideias de “descobrimento” “independência” e “abolição” postas em cheque ou questionadas para possibilitar o entendimento do desprezo pela cultura nacional e as razões de uma sociedade pacífica ou, porque não, passiva”, apresenta Leandro.
Para desenvolver o enredo, Leandro Vieira tem consultado historiadores e debruçado em livros e teses, além de uma grande pesquisa iconográfica para o desenvolvimento estético do desfile. Grandes descobertas estarão presentes no desfile da Verde e Rosa. “Você sabia que o Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes da assinatura da famosa Lei Áurea? Você já ouviu falar em Chico da Matilde? Em Maria Felipa? Sabia da existência de um herói chamado Cunhambebe? A história oficial escolhe quem deve e quem não deve ser lembrado. O desfile da Mangueira é um olhar para isso. Um olhar para quem deveria estar nos livros e porque, os que estão, foram escolhidos para estar”, conta o carnavalesco.
Sinopse
Com intuito de divulgar um enredo de conteúdo tão relevante a direção da Mangueira decidiu apresentar juntamente com o enredo sua sinopse, já para que os compositores da Estação Primeira possam ter um primeiro contato com o tema. Em breve será divulgado um encontro entre os compositores e o carnavalesco Leandro Vieira para que ele possa apresentar sua ideia e eventuais dúvidas possam ser sanadas.
Segue a sinopse da Estação Primeira de Mangueira para 2019:
HISTÓRIA PRA NINAR GENTE GRANDE é um olhar possível para a história do Brasil. Uma narrativa baseada nas “páginas ausentes”. Se a história oficial é uma sucessão de versões dos fatos, o enredo que proponho é uma “outra versão”. Com um povo chegado a novelas, romances, mocinhos, bandidos, reis, descobridores e princesas, a história do Brasil foi transformada em uma espécie de partida de futebol na qual preferimos “torcer” para quem “ganhou”. Esquecemos, porém, que na torcida pelo vitorioso, os vencidos fomos nós.
Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis “dignos” de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma “princesa” e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo.
De forma geral, a predominância das versões históricas mais bem-sucedidas está associada à consagração de versões elitizadas, no geral, escrita pelos detentores do prestígio econômico, político, militar e educacional – valendo lembrar que o domínio da escrita durante período considerável foi quase que uma exclusividade das elites – e, por consequência natural, é esta a versão que determina no imaginário nacional a memória coletiva dos fatos.
Não à toa o termo “DESCOBRIMENTO” ainda é recorrente quando, na verdade, a chegada de Cabral às terras brasileiras representou o início de uma “CONQUISTA”. E, ao ser ensinado que foi “descoberto” e não “conquistado”, o senso coletivo da “nação” jamais foi capaz de se interessar ou dar o devido valor à cultura indígena, associando-a “a programas de gosto duvidoso” ou comportamentos inadequados vistos como “vergonhosos”.
Comemoramos 500 anos de Brasil sem refazermos as contas que apontam para os mais de 11.000 anos de ocupação amazônica, para os mais de 8.000 anos da cerâmica mais antiga do continente, ou ainda, sem olhar para a civilização marajoara datada do início da era Cristã. Somos brasileiros há cerca de 12.000 anos, mas insistimos em ter pouco mais de 500, crendo que o índio, derrotado em suas guerras, é o sinônimo de um país atrasado, refletindo o descaso com que é tratada a história e as questões indígenas do Brasil. Não fizeram de CUNHAMBEMBE – a liderança tupinambá responsável pela organização da resistência dos Tamoios – um monumento de bronze. Os índios CARIRIS que se organizaram em uma CONFEDERAÇÃO foram chamados de BÁRBAROS. Os nomes dos CABOCLOS que lutaram no DOIS DE JULHO foram esquecidos. Os Índios, no Brasil da narrativa histórica que é transmitida ainda hoje, deixaram como “legado” cinco ou seis lendas, a mandioca, o balanço da rede, o tal do “caju”, do “tatu” e a “peteca”.
Levando em conta apenas pouco mais de 500 anos, a narrativa tradicional escolheu seus heróis, selecionou os feitos bravios, ergueu monumentos, batizou ruas e avenidas, e assim, entre o “quem ganhou e quem perdeu”, ficamos com quem “ganhou.” Índios, negros, mulatos e pobres não viraram estátua. Seus nomes não estão nas provas escolares. Não são opções para marcar “x” nas questões de múltiplas escolhas.
Deram vez a outros. Outros que, por certo, já caíram nas suas “provas”. Você aprendeu que os “BANDEIRANTES” – assassinos e saqueadores – eram os “bravos desbravadores que expandiram as fronteiras do território nacional”. DOM PEDRO, o primeiro, você “decorou” que era o “herói” da Independência, sem que as páginas dos livros contassem a “camaradagem” de um “negócio de família” tão bem traduzido pela frase do PAI do Imperador, que a ele orientou: “ponha a coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça”. Convém esclarecer aqui que os “aventureiros” citados por DOM JOÃO éramos nós, brasileiros, e que a “independência” proclamada – ou programada – foi para evitar que tivéssemos aqui “aventureiros” como Bolivar ou San Martin, patriarcas bem-sucedidos das “independências” que não queriam por aqui.
Como “CABRAL”, o “ladrão”, que roubou o Brasil lá pelas bandas de mil e quinhentos, ou PEDRO I, que através de um acordo “mudou duas ou três coisas para que tudo ficasse da mesma forma”, tem também o Marechal, o DEODORO DA FONSECA, homem de convicções monarquistas – amigo pessoal do Imperador PEDRO II – autor da proclamação de uma República continuísta – sem participação popular – traduzida em golpe e que, na ausência de líderes, mandou “pintar” um retrato do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o TIRADENTES, na tentativa de produzir “um personagem pra chamar de seu”.
Se a República foi “golpe”, conclui-se que “golpe” no Brasil não é novidade. Nem é novidade que a natureza dos “golpes” ainda estejam mal contadas. A rodovia CASTELO BRANCO “corta” São Paulo com “nome de batismo” em homenagem ao primeiro general “do GOLPE DE 1964”. Para cruzar a Baía da Guanabara em direção a Niterói, lá está a ponte PRESIDENTE COSTA E SILVA, o mesmo que fechou o Congresso Nacional e aditou o AI-5 suspendendo todas as liberdades democráticas e direitos constitucionais. Em Sergipe, em dias de jogos, a bola rola no estádio PRESIDENTE MÉDICI, o general dos “ANOS DE CHUMBO”, do uso sistemático da tortura e dos violentos assassinatos. Nas ruas – por terem lido um livro que “ninou” e não “ensinou” falando da suspensão dos direitos humanos, da corrupção e dos assassinatos cometidos no período – aparecem faixas para pedir “intervenção militar”, décadas depois da redemocratização.
Sem saber quem somos, vamos a “toque de gado” esperando “alguém pra fazer a história no nosso lugar”, quiçá uma “princesa”, como a ISABEL, a redentora, que levou a “glória” de colocar fim ao mais tardio término de escravidão das Américas. Nunca esperaremos ser salvos pelos tipos populares que não foram para os livros. Se “heróis são símbolos poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referências, fulcros de identificação” a construção de uma narrativa histórica elitista e eurocêntrica jamais concederia a líderes populares negros uma participação definitiva na abolição oficial. Bem mais “exemplar” a princesa conceder a liberdade do que incluir nos livros escolares o nome de uma “realeza” na qual ZUMBI, DANDARA, LUIZA MAHIN, MARIA FELIPA assumissem seu real papel na história da liberdade no Brasil.
O fato é que a atuação de “gente comum”, ou mesmo a incansável luta negra organizada em quilombos, em fugas, no esforço pessoal ou coletivo na compra de alforrias e em revoltas ou conspirações, já enfraqueciam o sistema escravocrata àquela altura. Entretanto, ensinar na escola o nome de “CHICO DA MATILDE”, jangadeiro, mulato pobre do Ceará (líder da greve que colocou fim ao embarque de escravos no estado nordestino, levando-o à abolição da escravatura quatro anos antes da princesa ganhar sua “fama” abolicionista) não serviria à manutenção da premissa de que as conquistas sociais resultam de concessões vindas “do alto” e não das lutas. A história de CHICO DA MATILDE era inspiradora demais para o povo. Não à toa, seu nome não está nos livros.
Esses nomes não serviram para eles. Para nós, eles servem. Para nós, sentinelas dos “ais” do Brasil, heróis de lutas sem glórias ainda deixados “de tanga” ou preso aos “grilhões”, eles são as ideias que usaremos para “gestar” o que virá. “Engravidados” de novas ideias, jorrará leite novo para “amamentar” os guris que virão. Sabendo outra versão de quem é o Brasil, – não a que nos “ninou” para quando fôssemos adultos – sabendo que CABRAL “invadiu” e que, ao invés de quinhentos e dezenove anos, somos brasileiros há quase doze mil anos. Conhecendo CUNHAMBEBE, a CONFEDERAÇÃO DOS CARIRIS, cientes da participação dos CABOCLOS na luta do 02 DE JULHO NA BAHIA, e sabendo que os índios lutaram e resistiram por mais de meio século de dominação, talvez se orgulhem da porção de sangue que faz de TODOS NÓS, sem exceção, índios. Sabendo que a “bondosa” princesa Isabel deu vez a “Chico da Matilde”, “Luiza Mahin” e “Maria Felipa”, é possível que reconheçam em si a bravura que vive à espreita da hora de despertar e aí, talvez, o “gigante desperte sem ser para se distrair com a TV”.
Cientes de que nossa história é de luta, teremos orgulho do Brasil. Alimentados de leite novo e bom, varreremos de nossos “porões” o complexo de “vira-latas” que fomenta nossa crença de inferioridade. Veremos tanta beleza na escultura de ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA quanto no quadro que eterniza o sorriso da Monalisa. Nos orgulharemos do “tupi” que falamos – mesmo sem saber. Daremos mais cartaz ao saci do que à “bruxa”. Brincaremos mais de BUMBA MEU BOI, CIRANDA E REISADO. Nossas crianças enxergarão tanta coragem no CANGACEIRO quanto no “cowboy”. Vibraremos quando SUASSUNA estrear em “ROLIÚDE” sem tradução para o SOTAQUE de João Grilo e Chicó. Não estranharemos caso o Mickey suba a ESTAÇÃO PRIMEIRA, troque “my love” por “minha nêga” e mande pintar o “parquinho” da Disney com o VERDE E O ROSA DA MANGUEIRA.
Por – Carnavalesco Leandro Vieira –
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