A menina magricela nascida no distante bairro de Padre Miguel, menos de 40 quilos de pura insistência em sobreviver, desembarca no badalado programa de calouros de Ary Barroso. Equilibrava bom punhado de alfinetes para conter os panos todos do conjunto que sobrava e sambava no corpo. O sonho de ser a moça bonita do rádio determinava as cantorias da pequena – lata d’água na cabeça – cuja infância havia sido subtraída pelo suor de sol a sol dos afazeres domésticos. Já em posição debutante no palco transmitido em ondas aos ouvintes, as lembranças de pueris duetos com o som do louva-a-deus e as espiadelas no pai violeiro garantiam relativa técnica. Mas a força para transcender o destino foi a autêntica locomotiva. O autor de “Aquarela do Brasil” fez as honras sem nenhum pingo de honra quando mirou o pedacinho de gente posicionado bem na boca de cena da História: “de que planeta você veio, minha filha?”. Gargalhadas histéricas na plateia, só que por breves segundos. Na aquarela de Ary, não havia destaque para a cor da resposta visceral, raio cósmico, cortina do passado dilacerada ante a metamorfose de uma divindade em flor: “eu vim do planeta fome”. Desvario. Apoteose. A primeira.
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Com o pedestal voltado à glória, soltou o talento até raspar o fundo do tacho d’alma para, ao fim, desabar nos braços daquele gênio letrado bem menos sabedor desse chão do que a sua humanidade supunha. Ora, o apresentador jamais imaginaria negra e pobre a arte-final esquecida pelo maior clássico que compusera. Próxima ao gongo em silêncio, e mergulhada na letra de “Lama”, estava, possivelmente, a imagem de Deus. Deusa – corrijamos – de joelhos e em adoração. Mulher. Que irrompeu a pergunta insensível, o direito que tinham para humilhá-la, as dificuldades do berço, o preconceito castrador e invasor do íntimo feminino, o racismo. A partir dali, nasceu uma estrela. Voz das vozes abafadas. Microfone de potente rouquidão rascante para os ais dos humildes. Água santa a revalidar existências e também as reminiscências ligadas à mãe lavadeira, ofício da roupa batida que faz marcar o ritmo de um futuro quase sempre estéril.
Curiosa a sina de se inserir e a outras carnes pretas no mapa oligarca branco forjado na marra e na régua. Numa só frase, desvelou o fogo de realidade que intelectuais com canudos enrolados nas grandes universidades mal conseguiram reconhecer brasa. Sua música se tornou trono matriarcal para denunciar as contradições da gigante “mátria” pouco gentil. Obrigada a trocar alianças quando a companhia eram as bonecas, deu à luz muito cedo, mas leite também aos que não pariu: holofote sobre os brasis ancestralmente invisíveis. E foi, justamente, da ordem do invisível, ou etéreo, certa passagem marcante e definidora – ainda nos tempos da dureza primordial. Prestes a ser atacada por uma vaca que pastava no entorno de casa, tratou de encarar o bicho bravo olho no olho. A coragem intuitiva reconfigurou a quase tragédia: recebeu uma inacreditável lambida do queixo à testa, passeio lingual com o aparente tamanho da eternidade.
Afogada na saliva e surpresa por esta viva, entendeu o banho viscoso como a unção protetora que a conduziria adiante. Seguiu. Limite? O céu, é claro. Pitoresco batismo em religião própria, cuja tábua de mandamento único ostentava a interpretação pessoal dos segredos de cima, lá onde mora o Guerreiro. Bruxa, mandingueira, sacerdotisa de poderes e sentimentos indomados. Fada canção. Feiticeira a macerar folhas de inspiração e fé no eu iluminado. Unguento, incenso, veneno. Movimento. O real e a quimera em qualquer batuque – do terreiro ao bar, do culto ao cabaré, da intimidade do chatô ao infinito da nação profunda. Suingue de credo, cruz ou cura
E aí não tardou, monumento vocal velozmente consagrado, para brilhar mundo afora e país adentro. Ergueu-se samba sincopado de trejeito característico, o jazz agridoce banhado na pimenta da terra que tudo dá, nosso divã social, espelho e síntese no mesmo metro e meio de entidade. Bossa nossa. Sobre o palco de asfalto da folia, encontrou outra estrela, de milhares em cortejo e também filha de Padre Miguel – a Mocidade –, tão independente quanto ela. E mergulhou na bênção mística da percussão, que alforria os corpos domesticados e faz do festival do couro a alegria de uma cidade ao celebrar a dádiva do pertencimento. Mas foi a obsessão por cantar o amor sem pudores a sua forma categórica de pertencer. Amor à arte, às escolhas, à distância. Ao guri. Ao malandro. Ao Mané. Amou e foi amada. Sem medo e sem vergonha. Sem limites. Ou quase: apesar da vocação para inspirar gentes no embalo da natureza passional, pagou o preço ao escolher decolar no torrão que censura as asas dos filhos. Tombou. Cadente estrela. Solitária.
Bailarina equilibrista que sempre teceu a vida a partir do fio da liberdade, experimentou o da navalha quando os malabares com os quais distribuiu encanto viraram pedras contra si. A redentora passou a algoz no picadeiro moral dos supostos bons costumes. Sentiu o tapa, a ferida, o esquecimento. E pedaços arrancados. De novo. Porém, o trapézio que lança ao Olimpo, e vê desabar se as mãos deslizam no voo em cego dos mistérios de existir, tem no final do abismo uma rede de proteção fraternal. Dura na queda, conseguiu ser devolvida do fosso da orquestra. Mais forte. Tal qual a língua – aqui, a humana – que roça a nuca e reacende o arrepio. Diva sensorial a nos ensinar sobre a delícia de cultuar a própria carne mal taxada e o espírito, na cruzada em desafio aos intolerantes. Pele e osso que sentem lava escorrer e exclamam política transgressora, para inferno e desnudar dos caretas. Cóccix, peito, nervos, coração, pescoço. Garganta.
Ela, então, coloca desordem na preconceituosa ordem vigente, dando ré no apocalipse com o dito planeta fome completamente desgovernado. Pula o muro, alastra-se no proibido e perfuma a missão – herdada desde o show seminal – de fazer multidão frenética os carimbados como minoria. Eis a incendiária porta-estandarte de quem inclui, desafia, abraça, respeita, desatina, desata, transforma e se transforma. Do protagonismo feminino radicalmente contrário à mão levantada para a mulher. Dos amantes que, na embriaguez libertária, gozam sensualmente o afeto sem mordaça e constelam aflição pelo beijo ardente. O ato de transmutação do fazer artístico em grito dos incontroláveis por todos os milênios.
No altar do samba brasileiro, a Mocidade encontra o elo fundamental perdido e celebra a apoteose de uma estrela da canção ao reinventar o agora. O seu nome é agora – menina, senhora, doutora do tempo. A mensagem que deixamos para o próximo carnaval pinta o Black e tem o Power, traz a revolução de um abalo sísmico, a urgência explosiva de um novo Big Bang, põe Exu nas rodas, nas escolas, na prosa, é rua, nua e crua:
Deus é mesmo mulher. Deus é negra.
Ouçam a sua palavra que nos invade.
Salve a Mulher do Fim do Mundo.
Salve Elza Deusa Soares.
Carnavalesco: Jack Vasconcelos
Sinopse: Fábio Fabato
Pesquisa e Colaboração: André Luís Junior
Referências (além da discografia de nossa Elza Deusa Soares):
CAMARGO, Zeca. Elza. Rio de Janeiro: Leya Casa da Palavra, 2018
CASTRO, Rui. Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 1995.
DINIZ, Alan; FABATO, Fábio; MEDEIROS, Alexandre. As três irmãs: como um trio de penetras “arrombou a festa”. Rio de Janeiro: NovaTerra, 2012, Família do Carnaval.
LOUZEIRO, José. Elza Soares: Cantando para não enlouquecer. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2010.
PEREIRA, Bárbara. Estrela que me faz sonhar. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2013, Cadernos de Samba.
SUARES, Gerson. De pernas para o ar: minhas memórias com Garrincha. Rio de Janeiro: Oficina Raquel.
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