Não se discute o fundamental papel da imprensa livre na subsistência da democracia. Isto é um fato inquestionável. Aliás, democracia e imprensa são gêmeos siameses, pois a democracia pressupõe a existência de imprensa livre e não existiria a imprensa sem a democracia
Jornalismo e a perda da objetividade
Mauricio Ferro é advogado com mestrado e especializações realizadas em universidades como a London School e University of London. Cursou OPM na Harvard Business School. Autor de trabalhos nas áreas comercial e de mercado de capitais com atuação no Conselho de Administração de grandes empresas.
Não se discute o fundamental papel da imprensa livre na subsistência da democracia. Isto é um fato inquestionável. Aliás, democracia e imprensa são gêmeos siameses, pois a democracia pressupõe a existência de imprensa livre e não existiria a imprensa sem a democracia. Mas, os principais veículos de comunicação estão perdendo a objetividade jornalística, crucial para uma cobertura isenta, aprofundada e com finalidade informativa.
Determinados governos, setores e clientes comerciais das empresas de mídia são poupados das informações mais aprofundadas e contundentes em seus noticiários. Natural se levarmos em conta que a indústria da mídia é um negócio empresarial como outro qualquer e que, portanto, precisa ser gerido de modo a dar lucro, mas deixa de ser o que se espera do jornalismo profissional.
Profissionais da imprensa precisam apurar, entrevistar, pesquisar, checar dados, ouvir todas as partes envolvidas e escrever de maneira que a notícia chegue de forma correta, isenta, imparcial e factual e se responsabilizam pelo que divulgam. São regras vitais para o jornalismo e, sem elas, a profissão não se sustenta. É o que se chama objetividade jornalística, uma espécie de utopia do setor, pelo qual a busca é incessante. Um ideal a ser atingido. Isto é o que difere jornalista, dos bloqueiros, influenciadores, ou toda sorte de atividades livres das redes sociais. Estes, ao contrário daqueles, escrevem o que lhes convém de forma subjetiva e opinativa e por não terem os deveres e privilégios da função jornalística, não lhes são imputados a mesma credibilidade e proteção jurídica. Daí porque convencionou-se no ideal do jornalismo a adoção do critério da busca pela objetividade como forma de garantir mais equilíbrio e justeza nas coberturas.
Acontece que essa objetividade vem sendo comprometida. Há, até mesmo, críticos acadêmicos e alguns jornalistas que sustentam que a objetividade deixe de ser uma meta declarada do jornalismo, já que ela não pode ser alcançada, dado o viés subjetivo do jornalista na elaboração da reportagem.
No Brasil, um dos jornais de referência do país, a Folha de São Paulo, tem abordado constantemente o tema, em artigos datados de 18 de março, 15,17 e 22 de abril. Em todos estes artigos, repete-se o grande perigo de “renunciar à objetividade” e assim acabar com o “jornalismo profissional”, tornando os jornalistas meros militantes. Mas, aí fica a pergunta: por que haver o debate sobre possível abandono da objetividade no jornalismo? Será que as empresas de mídia e os jornalistas estão se rendendo aos prazeres dos likes de suas reportagens, agindo como blogueiros numa corrida atropelada para as redes sociais para transmitir sentimentos impulsivos, sarcasmo e falso moralismo?
Parte importante da imprensa brasileira deveria fazer uma profunda revisão de si mesma. Em nenhum momento coloca-se em questão, por exemplo, o que foi feito da objetividade jornalística da Folha, O Globo, o Estadão, Jornal do Brasil, correio da Manha, e de outros grandes veículos da imprensa profissional, quando estes apoiaram a ditadura militar brasileira, ou cobriram a Lava Jato. Em vez de objetividade jornalística, houve, além de reportagens enviesadas, o silencio permissivo como analisou o pesquisador Álvaro Nunes Larangeira, em artigo sobre Silêncios permissivos: os cadernos especiais da Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil no 10º ano do regime militar.
São muitas as contradições que colocam em xeque a forma como as empresas de mídia utilizam regras e técnicas para driblar a objetividade. Não é novidade que todo negócio comercial tenha interesses específicos. O problema é tentar fazer o jogo da imparcialidade, como se não apoiar expressamente um partido político, governo, ou oposição significasse que a empresa de mídia é ideologicamente neutra, ou usar a versão de uma suposta “fonte” para publicar reportagens enviesadas.
O ex-editor executivo do Washington Post, Martin Baron afirma que abandonar a objetividade seria falha grave do jornalismo e que nota com preocupação um crescente repúdio a esse princípio na própria imprensa. Ele argumenta que, “ao contrário do que dizem seus detratores, a objetividade não significa neutralidade, mas uma investigação tão imparcial quanto é humanamente possível, o reconhecimento de que os fatos são sempre complexos e que jornalistas precisam ter disposição para ouvir e ânsia de aprender para superar limitações e cumprir seu trabalho”. Diz ainda o ex-editor: “Muita atenção tem sido dada recentemente à objetividade no jornalismo…. Estou prestes a fazer algo tremendamente impopular em minha profissão hoje em dia: defender a ideia.”
Segue Martin Baron afirmando que se queremos que outras profissões, como médicos, juízes, cientistas, policiais, políticos, atuem de forma objetiva, sem agendas preexistentes ou vieses, o jornalista também precisa buscar esta objetividade, ou seja, uma apuração justa, honesta, honrada, precisa, rigorosa, imparcial e aberta às evidências está na base do jornalismo profissional. A sociedade espera que os jornalistas também sejam objetivos. Assim, ignorar estas expectativas é um ato de arrogância. Demonstra leniência com os vieses e trai a causa da verdade.
Walter Lippman, um dos mais influentes defensores da objetividade jornalística publicou, em 1920 “Liberty and the News” (liberdade e as notícias), no qual afirmava, já naquela época que “Há em toda parte uma desilusão cada vez mais furiosa com a imprensa, um senso crescente de as pessoas estarem perplexas e se sentirem enganadas.” Ele temia um ambiente em que as pessoas “cessam de reagir às verdades e reagem simplesmente a opiniões, ao que alguém afirma, não ao que de fato é”. Ele se preocupava com a ideia de que as pessoas “acreditam naquilo que corresponde mais confortavelmente às suas ideias preconcebidas”. Seu diagnóstico foi muito semelhante ao que nos causa tanta preocupação nos dias de hoje: as instituições democráticas estavam ameaçadas. Ele enxergava o jornalismo como essencial à democracia, mas, para que pudesse cumprir seu propósito, precisava de padrões.
Lippmann reconhecia que todos temos ideias preconcebidas, mas escreveu que “realizaremos mais lutando pela verdade que lutando por nossas teorias”. Por isso, pedia “uma investigação dos fatos tão imparcial quanto for humanamente possível”. Aí entrou a ideia de objetividade: uma investigação dos fatos tão imparcial quanto é humanamente possível.
Objetividade não é neutralidade. Não é jornalismo do tipo “por um lado isso, por outro lado aquilo”. Não é falsa equivalência. Não é atribuir peso igual a argumentos opostos quando a grande maioria das evidências aponta em uma direção.
O princípio da objetividade tampouco visa sugerir que jornalistas são isentos de viés. Como escreveram Tom Rosenstiel, professor de jornalismo na Universidade de Maryland, e o ex-editor-executivo Bill Kovach no livro “Elementos do Jornalismo”. “O termo nasceu do reconhecimento crescente de que os jornalistas estão cheios de vieses, muitas vezes inconscientes”. Assim, “a objetividade exigiu que eles desenvolvessem um método consistente para testar informações, uma abordagem transparente das evidências, precisamente para que seus vieses pessoais e culturais não prejudicassem a precisão de seu trabalho”. Assim “não é o jornalista que é objetivo, mas o método, e a chave está na disciplina do ofício”.
A ideia é que o jornalista inicie a pesquisa com a cabeça aberta com disposição de ouvir, desejo de aprender e partir para descobrir o que não sabe. Isso, se chama trabalho de reportagem.
Dean Baquet, ex-editor-executivo do New York Times, comentou em 2021, que “uma das grandes crises de nossa profissão é a erosão da primazia do trabalho de reportagem. A certeza é uma das inimigas do ótimo trabalho de reportagem”.
Todos esses pontos sugerem que o jornalista evite se arrogar a posição de autoridade moral. Deve evitar a reportagem semipronta, em que a escolha de fontes é um exercício de confirmação de viés e quando se procura ouvir a voz do outro lado (muitas vezes no último minuto), apenas porque isso é exigido, não como ingrediente essencial de um trabalho de investigação honesto. Isto deve soar familiar para muitas pessoas que viveram os acontecimentos políticos e as investigações criminais dos últimos anos no Brasil. É a razão pela qual a objetividade jornalística é imprescindível.
E para concluir, volto às palavras do ex- editor Martin Baron: “Fracassamos com frequência, de modo constrangedor e grave. Em muitos casos, fizemos o mal por erros de ação e erros de omissão. Devido à pressa e ao descaso, devido ao preconceito e à arrogância. Podemos e devemos ter uma discussão vigorosa sobre como a democracia e a imprensa podem servir melhor ao público. Entretanto, a resposta às nossas falhas como sociedade e como categoria profissional não é renunciar a nossos princípios e padrões. Há muito disso ocorrendo hoje. A resposta está em reafirmar os princípios da objetividade do jornalismo”. Desse modo, termino por aqui, a sociedade e a democracia se beneficiariam muito se no jornalismo tivesse mais humildade e menos arrogância.
-GPLUX-
Foto de Capa: Internet
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