Sinopse do enredo
Conta-se pelas esquinas e agora cantamos com vocês.
Foi num dia daqueles, de sol escaldante. A poeira levantava do chão de terra batida com o vai e vem incessante das saias. Orum e Aiyê estavam unidos em prol de uma grande comilança. Logo cedo já se podia ouvir o tititi vindo da cozinha, toda organizada para o rito do alimento sagrado. Afinal, tudo tem sua ordem e seu lugar. A pele preta azeitada de suor refletia o branco dos trajes da iabassê. O mel de Oxum adocicava as palavras enquanto ela comandava toda a produção. A partir das instruções das mães da cozinha, os trabalhos aconteciam a todo vapor, embalados pelo tumtumtum ritmado do pilão de Oxaguian.
Neste chão tudo come, mas nem todos comem de tudo; saber o agrado do santo é fundamental. Omolu assistia o pulular das pipocas. Iemanjá preparava canjica como se o milho fosse delicadas pérolas para encantar Oxalá. Esquentando as panelas de dendê, Xangô fazia seu fogo crepitar cada vez mais poderoso. Na esteira a seu lado, uma Iaô, com copo d’água, vela acesa e boca fechada, picava os quiabos para preparar o amalá e o caruru com muito amendoim para as crianças. Ossain macerava as ervas e temperos para dotar os preparos de seu cheiro e sabor inconfundíveis. Exú, que não é bobo, deu logo uma beliscada em seu padê e foi o primeiro a comer. Ficou imaginando sua próxima brincadeira enquanto lançava olhares cúmplices a Ogum, que afiava seu obé para descascar o inhame.
Papo vai, fogo vem, no caminhar de Oxumarê os aromas começaram a circular pelos ares da cidade. Não demorou para que um burburinho borbulhasse e o povo nas ruas passasse a procurar de onde vinham aqueles cheiros divinos que davam água da boca. Ao perceber a situação, Oyá deu a missão de que um tira-gosto do seu bolinho de fogo chegasse aos mercados. Oxum ensinou suas filhas a exibirem seus quitutes como balangandãs. As baianas, então, prepararam enfeitados tabuleiros e foram mercar as guloseimas pelas encruzilhadas. Era de se comer com os olhos! Todo mundo queria cair de boca no dourado acarajé, no recheado abará, no quentinho angu… O acossi estava ganho, alimentando as esperanças de liberdade.
Para aquecer o movimento, Exú espalhou pelas mesas do Brasil uma pitada de dendê, pimenta, ervas e outras iguarias de axé. De grão em grão a galinha encheu o papo e o tempero dos encantados caiu no gosto popular. Mingau pra dar e vender, mungunzá, sarapatel, vatapá, xinxim; de sobremesa acaçá, cocada e quindim. As receitas, temperadas sempre ao gosto do freguês, se misturaram num encorpado molho de lamber os beiços pelos mercados, feiras e praças.
E…
Aqui na nossa praça Sebastião Carlos Belo, o ritmo da faca tocando no prato salpicou a lembrança de que a comida cai melhor junto de um samba. Nesse ritmo, Ogum subiu o Santa Marta e convocou toda a comunidade para a saborosa festa. Para garantir a fartura, preparou com os demais orixás um prato que desse sustância pro povo celebrar a vida. Oxóssi chegou com carnes e salgados que foram misturados ao feijão preto, acompanhado de muito arroz, torresmo e couve refogadinha. Nasceu a feijoada carioca, feijoada das tias baianas, das mães do samba.
Enquanto os caldeirões ferviam, o couro já estava comendo. Os tambores, afinados no sacrifício pelos ogãs, esquentavam os corpos e os orixás dançavam entre os mortais. A bateria Furacão Azul engrossava o caldo e Oyá soprava o vento que garantia o giro perfeito do pavilhão azul e branco. Os copos sempre cheios de otim. Cerveja, cachaça, rum… depende do gosto de cada um, mas o primeiro gole é sempre do santo.
Quando as baianas começaram a servir a feijoada, as verdades amargas do dia a dia se dissolveram no líquido quente, dando lugar a relações apimentadas e situações picantes que só a legislação do estômago pode julgar. Todos foram convidados a se lambuzar na alegria farta do doce sambar. As matriarcas do samba sorriam, sabendo que cada grão de feijão carrega uma história, cada pedaço de carne, um fundamento. Nessa cozinha de saberes e sabores ancestrais, nada é desperdiçado.
Com o fim da noite e a barriga cheia, as divindades subiram extasiadas e nós ficamos empanturrados de axé. E assim, a comida de santo tornou-se comida de gente, sagrado e profano se mesclando na boca do brasileiro, dançando juntos no samba da vida. Essa mistura de sabores é um Brasil sem preconceito que só a comida é capaz de oferecer; onde a magia está no mundano, e o divino se revela no cotidiano ato de compartilhar uma refeição. Comida é fundamento da vida, alimento de corpo e alma.
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Concepção, pesquisa e texto:
Carila Matzenbacher, Artur Paschoa e Cleiton Almeida
GLOSSÁRIO
Ajeum: do yorubá awa (nós) e jeun (comer), nós comemos, comer juntos; é a refeição compartilhada;
Acossi: dinheiro, ganho;
Bolinho de fogo: acarajé;
Iabassê: Mãe da cozinha, cargo exclusivamente feminino dos terreiros de candomblé. Geralmente filhas das orixás Oxum ou Oyá. É a pessoa responsável pela cozinha ritual;
Iaô: Filhos de santo que passaram pelos rituais de iniciação e renasceram com orixá, nas religiões de matrizes africanas;
Obé: faca, facão;
Orum e Aiyê: a dimensão espiritual e a material, o mundo terreno e o divino, vulgo céu e terra;
Otim: bebida, de preferência alcoólica;
Peji: santuário, altar, espaço sagrado dedicado ao rituais privados, morada das divindades;
Santo: o que é cultuado ao nível mítico, termo popular para designar as divindades africanas ou católicas.
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-Gardel Assessoria-
Foto de Capa: Gabriel Belmiro
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